Seis meses. Há 180 dias, na manhã de 3 de maio, o Rio Grande do Sul amanhecia para aquele que seria um dos dias mais terríveis de sua história. A água, tão essencial para a vida, tomou conta de casas, empresas e espaços públicos. Passado todo esse período, ainda há a necessidade de reinvenção e de reconstrução para que vidas voltem ao normal no Estado. Em Porto Alegre, enquanto é celebrado o retorno de estruturas como o Trensurb e o Aeroporto Salgado Filho, empresários locais comemoram aos poucos a possibilidade de voltar a atuar no mercado.
Um destes casos é o do veterinário Alexandre Pezzi, de 59 anos, que viu sua clínica, localizada há mais de duas décadas na avenida A. J. Renner, no bairro Humaitá, ser destruída pela água no dia 3 de maio. Junto com a esposa, Jaqueline Pezzi, de 58 anos, ele decidiu se reinventar para voltar a atender. Ainda em junho, o casal adquiriu uma van e, após reformas e adequações, está desde o início de outubro realizando consultas e procedimentos de forma móvel, tanto no Humaitá como em outros bairros da Zona Norte da Capital.
Moradores de Alvorada, o casal viu sua única fonte de renda e a grande parte da sua clientela ser afetada pela cheia. “Estávamos ali há mais de 25 anos. Hoje tu passa pelo Humaitá e Farrapos e vê casas onde as pessoas não voltaram. Muita gente perdeu tudo, inclusive seus bichos. Então essas pessoas também precisam se refazer, comprar móveis novos. E aí que surgiu a ideia do atendimento móvel, podendo atuar não só naquela região”, relatou o veterinário e empresário.
No consultório móvel, Alexandre e Jaqueline realizam coletas de materiais para laboratórios, consultas, vacinas, serviços de imagem, ultrassom e muitos procedimentos. Entretanto, Pezzi reforça que a van é um suporte para o serviço prestado. “O atendimento mesmo é feito mesmo dentro da residência dos clientes. Mas aqui eu tenho tudo, como medicamentos e materiais especiais de laboratório. Cheguei a atender de carro, mas tinham limitações. E estamos até nos surpreendendo com a aceitação da van. Muita gente nos procura. Sou formado há 35 anos. Eu sou veterinário, não sei fazer outra coisa. Então isso foi uma reinvenção do meu próprio negócio”, completou.
Para o casal, essa mudança nos rumos do negócio após a enchente ajudou inclusive a angariar novos clientes. “A gente já tinha um bom nome no mercado e as pessoas gostaram muito desse novo formato, pois a gente consegue atender a um nicho de pessoas que têm dificuldade de locomoção ou que têm cães grandes, que dificilmente conseguiriam levar o animal para o consultório. Com a van, a gente consegue dar um atendimento de qualidade para esse pet”, citou Pezzi.
“Já que a água levou tudo, esse foi o jeito que deu pra não parar de trabalhar. E está sendo extremamente divertido, pois as pessoas nos parar na sinaleira para tirar fotos. Foi a maneira que encontramos para recomeçar”, reforçou a esposa Jaqueline. Ela relembrou ainda que, durante a enchente, atuaram de forma voluntária no abrigo montado no Porto Seco, também na Zona Norte. Entretanto, ao retornarem à clínica, que era alugada, depararam-se com um cenário de tristeza.
“Só voltamos ao consultório no dia 27 de maio. Estava uma bagunça. Parecia que haviam ligado um liquidificador dentro. Tudo jogado pelos cantos. Livros da minha época de faculdade foram destruídos. Um deles era a primeira edição, de 1925. Não conseguimos reaproveitar nada da clínica. De lá, restaram os animais, que eram nossos e ficavam por lá. A gente conseguiu retornar no sábado, dia 4 de maio, e salvamos eles. Agora estão todos na nossa casa, em Alvorada”, finalizou o veterinário.
A luta de Pezzi para não fechar as portas é a mesma que cerca de 46 mil empresas travam desde o dia 3 de maio na Capital. Segundo um levantamento do Escritório da Reconstrução da Prefeitura de Porto Alegre, foram 45.970 empreendimentos atingidos na mancha de inundação, além de 39.422 imóveis. Ao todo, 160.210 pessoas foram afetadas diretamente pela cheia histórica de maio.
Segundo o economista da Câmara de Dirigentes Lojistas de Porto Alegre (CDL Poa), Oscar Frank, as empresas da Capital ainda convivem com os reflexos da catástrofe climática. Um dos exemplos dado por ele é o Índice de Atividade Econômica do Banco Central (IBC-BR), que apontou, em agosto, um patamar 0,7% abaixo do registrado em abril. “Isso quer dizer que em maio, no período das inundações, nós recuamos para o patamar de dois anos antes. É como se tivéssemos pego uma máquina do tempo e voltado dois anos”, contou.
Frank também ressaltou a dicotomia existente entre os setores neste momento de retomada, principalmente fomentada pelos auxílios federais e estaduais encaminhados ao RS. Segundo ele, enquanto o varejo amplo está 7,6% acima do patamar de abril, a indústria e os serviços ainda demoram a se recuperar, com 2,8% e 11,8% abaixo do mesmo período.
“No caso específico dos serviços, observamos quedas significativas em alguns ramos, como transporte, hotelaria e alimentação. São setores que dependem muito do turismo e ainda vivemos algumas restrições por causa dos estragos. Outro aspecto que merece ser apontado é que a retomada do emprego formal tem sido lenta. Ainda estamos com um deficit de 13,4 mil vagas em comparação com abril, antes das enchentes”, completou.
Para o economista, o que ajuda a explicar a retomada lenda é a dificuldade vivida pela falta de medidas para preservar empregos. “Os auxílios do governo demoraram para aparecer e se mostraram insuficientes. As medidas de ajuda também foram direcionadas apenas para os agentes dentro da mancha de inundação. Preservar vínculos e permitir o acesso ao crédito para as empresas ainda são situações essenciais no curto prazo”, concluiu.
Fonte: Correio do Povo /