Começou devagar e quase por acaso. “Eu recebi uma proposta para trabalhar em Curitiba. Era tempo da pandemia. Eu fui, mas o emprego acabou não se concretizando. Comecei a fazer investimentos de risco na bolsa de valores para ocupar o tempo e tentar ganhar um dinheiro. Em seguida, descobri as apostas. Foi a pior coisa que aconteceu na minha vida. Logo em seguida, eu já ficava o dia inteiro jogando. À noite, quando a minha esposa estava dormindo, eu me trancava no banheiro, entrava nos sites e fazia um pix atrás do outro. Eu queria ganhar”, afirma Antônio, nome fictício de um adicto em jogos, entrevistado pelo CP.
Ele não aposta desde o meio do ano passado, mas sabe que nunca mais será o mesmo após experimentar os sites de bets: “Hoje, eu gasto 90% do meu salário para pagar minhas contas antigas. A família é sustentada pela minha esposa. Tive que adiar o sonho de ter um filho e, por causa do meu vício, já tentei me matar oito ou nove vezes. Ao todo, perdi mais de R$ 1 milhão, dinheiro que eu não tinha”.
O relato de Antônio é chocante, mas está longe de ser novidade. O número de pessoas viciadas no jogo, sobretudo nos últimos três anos, período de maior proliferação das bets, aumentou substancialmente, destruindo histórias de vida, causando a ruína das pessoas e comprometendo a economia de uma forma alarmante. O crescimento das casas de apostas on-line gerou mudanças significativas nos hábitos de consumo dos brasileiros, que estão se tornando cada vez mais evidentes para o mercado. Ou seja, as empresas dos ramos de comércio, serviço e turismo, entre outras, precisam se preparar para novos desafios que podem ir além da concorrência entre si. Elas precisarão, cada vez mais, disputar uma fatia do orçamento dos brasileiros com o setor de apostas, conforme estudo elaborado pela PwC Strategy& do Brasil Consultoria Empresarial Ltda, ligada à multinacional de auditoria e assessoria PricewaterhouseCoopers.
A análise comprova que os gastos com as apostas cresceram tanto nos últimos anos que estão drenando recursos que antes eram utilizados para lazer, cultura, higiene, vestuário e até alimentação das famílias. E, pior, não raras vezes, os jogadores se endividam a ponto de comprometer a renda familiar por anos. “Por causa das apostas, eu usava cueca rasgada. Eu não comprava nada. Eu nunca levei a minha esposa para jantar. Eu nunca comprei algo para mim ou para minha família. Ia tudo para o jogo”, lembra Antônio.
O problema, porém, não é incomum. Jorge, outro jogador compulsivo entrevistado pelo CP, tem 31 anos e é empresário. Assim como Antônio, começou jogando aos poucos, como uma brincadeira, mas não conseguia parar. Destruiu o próprio patrimônio e comprometeu o futuro. “Nas minhas contas, vou demorar mais sete anos para pagar tudo o que devo”, lamenta.
Ele começou a jogar pôquer quando era bem mais jovem. Pensou que era bom naquilo e chegou a cogitar abandonar um mestrado em engenharia e o trabalho em uma empresa do ramo para dedicar-se ao jogo. Chegou a ficar sete dias confinado em uma casa em Porto Alegre onde se realizam torneios da modalidade, quando perdeu cerca de R$ 200 mil acumulados nos anos anteriores. “Perdi tudo que eu tinha e ainda fiquei devendo R$ 10 mil para o clube. Naquele momento, percebi que aquilo poderia ser um problema”. Mesmo assim, seguiu jogando, pedindo dinheiro emprestado, torrando as próprias economias. “O jogador, em geral, transforma-se em mentiroso compulsivo. Ele mente para os pais, mente para a família, mente para os amigos. Uma vez, pedi R$ 5 mil emprestado para um cara que nem conhecia para poder jogar. Mentindo, claro.”
Apesar de já ter consciência de que o jogo significava um problema em sua vida, Jorge insistiu. Na época, além do pôquer, utilizava sites de apostas esportivas. Depois de um tempo, procurou uma psicóloga e tratamento, mas ainda acreditava que poderia “dominar o vício”. “Achei que poderia tomar as rédeas daquilo. Acreditei que poderia jogar nos sábados e domingos, como recreação, e seguir a vida normal durante a semana. Impossível. Um alcoólatra não pode dar o primeiro gole, assim como um adicto em jogo não pode fazer a primeira aposta. O problema é que, hoje em dia, elas estão em todos os lugares. Basta ligar a televisão”.
Antônio chegou ao fundo do poço em meados do ano passado. “A mente do viciado se boicota. Quando comecei, jogava dinheiro que eu tinha, mas que não podia gastar com o jogo. Era para outros gastos, para pagar as contas e comprar comida. Depois, passei a usar limite de cartão e pegar empréstimos. Atualmente, devo para todos os bancos possíveis e até o meu carro refinanciei para ter dinheiro para jogar. Logo em seguida, veio a depressão. Tentei me matar afogado, eletrocutado. Deixei o fogão ligado e acendi um cigarro. As pessoas estavam se afastando de mim. Eu não falava a verdade. Só mentia e manipulava”, lembra ele, que atualmente está em recuperação.
Antônio conheceu os Jogadores Anônimos após a última tentativa de suicídio. “Eu estava na ponte do Guaíba e ia me atirar, quando me dei conta do que estava fazendo. Voltei para casa e passei a procurar ajuda. Daí, encontrei os Jogadores Anônimos, que tem um grupo em Porto Alegre. Caiu a ficha de que o meu problema é uma doença e que eu precisava de ajuda. Sofri e continuo sofrendo, mas minha família sofreu muito mais. Estou há um ano e um mês sem jogar e tenho esperança de que vou sair desse mundo”.
Ludopatia, uma epidemia moderna
Antônio e Jorge não são casos isolados. Eles próprios testemunham o aumento na procura por acolhimento e recuperação no núcleo dos Jogadores Anônimos de Porto Alegre. “Quando eu comecei a frequentar o grupo, eram seis ou sete pessoas por encontro. Agora, são 40, sendo que a maioria viciada nas bets”, afirma Jorge.
A ludopatia, que é dependência patológica ao jogo, é uma doença reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) desde 1980. Porém, se agravou muito nos últimos anos, principalmente após o advento das plataformas on-line de apostas. De acordo com o médico psiquiatra Hermano Tavares, coordenador do Programa Ambulatorial do Jogo (PRO-AMJO) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, em São Paulo, as pessoas acham que têm o controle do problema e confundem a situação, deixando-se levar pela ilusão do ganho fácil, que, aliás, é “vendida” nas propagandas.
“O indivíduo afetado pelas apostas tem o que chamamos de ilusão de controle. Ou seja, acredita que possui características e atributos pessoais, como experiência, inteligência e intuição, que são capazes de promover uma habilidade superior na previsão ou no controle do resultado. Mas isso não existe”, explica Tavares. O médico salienta que o viciado não é o único a perceber tardiamente o tamanho do problema. A família também descobre tarde demais o tamanho do buraco financeiro e psicológico cavado pelo jogo.
Problema para a economia
De forma geral, a maioria dos usuários de bets enxerga a atividade como uma forma de conseguir dinheiro rápido. Pior: há os que confundem apostas com investimento. Um levantamento do Banco Central, divulgado em setembro, mostrou que as casas de apostas receberam R$ 10,5 bilhões de beneficiários do Bolsa Família de janeiro a agosto de 2024. Os pagamentos foram feitos via pix.
O estudo também mostrou que o gasto médio pelos beneficiários do Bolsa Família foi de R$ 1,3 bilhão por mês, ou R$ 147 por pessoa. Destes apostadores, 5,4 milhões (60,5%) são chefes de família e enviaram R$ 6,2 bilhões (59,3%) por pix para as bets. Resumindo, o dinheiro que deveria ir para o custeio das necessidades mais básicas de uma família em situação de vulnerabilidade tinha como destino final as casas de jogos on-line. De acordo com outro estudo divulgado também neste ano, encomendado pelo Santander, os gastos com vestuário e calçados caíram de 3,5% para 3,1% do orçamento familiar entre 2018 e 2023, enquanto os gastos com apostas subiram de 0,8% para 1,9%.
As bets, além de competir pelo dinheiro que iria para outros tipos de consumo, causam danos estruturais para a economia. Afinal, quando uma loja vende um produto como uma camisa ou um sapato para o consumidor final, antes, ele abasteceu uma cadeia muito maior que cria empregos, gera renda e arrecada impostos. “É difícil estimar como esse fenômeno, que é muito novo, impacta nas vendas do varejo. Mas quando a gente analisa o crescimento deste mercado, a gente percebe que o dinheiro que a pessoa tem para gêneros de consumo está indo também para as bets. Pior que isso: há uma confusão na cabeça dessas pessoas. Elas não pagam pelo entretenimento que as apostas podem, porventura, oferecer. Elas estão apostando na ilusão de estar fazendo um investimento, achando que podem ganhar dinheiro com aquilo, quando todas as pesquisas mostram o contrário”, afirma o vice-presidente da Câmara de Dirigentes Lojistas de Porto Alegre, Carlos Klein.
Ele salienta que a possibilidade, ainda que remota, de um prêmio instantâneo e o fascínio da riqueza sem esforço são argumentos que seduzem uma população pouco acostumada aos conceitos de economia e à educação financeira e sem o costume da poupança. “Quando as famílias têm menos dinheiro, elas consomem menos no varejo. E isso tem um impacto direto na economia porque traz repercussões imediatas na indústria, na logística e no próprio varejo. Todos os setores criam menos empregos”, continua Klein. “Estamos enfrentando uma competição desleal porque as bets trazem uma expectativa falsa de investimento com retorno certo. Mas ninguém fica rico apostando em bets”.
Além disso, os empresários estão percebendo um aumento fora do padrão de seus funcionários pedindo antecipação de férias, 13º salário, empréstimo ou tentando celebrar acordos de demissão a fim de acessar o FGTS e usar o dinheiro para pagar dívidas contraídas por causa da ludopatia. “Há diversos relatos de depressão, estafa e outros problemas relacionados ao jogo. Estamos percebendo que muitos funcionários estão, inclusive, forçando uma demissão para acessar as verbas rescisórias na tentativa de colocar as contas em dia. As pessoas perdem nas bets e buscam dinheiro onde podem para tentar jogar mais, porque elas acham que poderão recuperar o dinheiro perdido jogando mais. É um ciclo que se retroalimenta. É uma loucura”, lamenta Carlos Klein.
Autoridades e entidades empresariais estão alertas
De maneira geral, autoridades e entidades empresariais estão mais alertas aos efeitos das plataformas de apostas on-line tanto na economia quanto na saúde das pessoas. “O Brasil sempre foi contra cassino e qualquer tipo de jogo de azar. Hoje, através de um celular, o jogo está dentro da casa da família, dentro da sala. Nós estamos percebendo no Brasil o endividamento das pessoas mais pobres tentando ganhar dinheiro fazendo apostas. Esse é um problema que nós vamos ter que regular porque, senão, daqui a pouco, vamos ter os cassinos funcionando dentro da cozinha de cada casa”, afirmou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em um evento em Nova Iorque em setembro. Para ele, as plataformas de jogos on-line apostam na “mentira” para atrair as pessoas. “A gente está vendo uma loucura. A monetização da mentira pela rede digital. Com gente ficando bilionário, milionário. O que estamos vendo no país como o Brasil são os jogos de aposta”, declarou.
O governo federal promete agir rápido. Além de impedir o pagamento das plataformas através dos cartões do bolsa família, será proibido uso de cartões de crédito na plataforma. A Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) deu início nesta sexta-feira ao bloqueio dos sites consideradas irregulares, são mais de 2 mil. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, explicou que após a retirada dos sites ilegais começará o prazo de 180 dias para que o poder público se manifeste quanto aos processos de empresas que pediram autorização para atuar no país depois de agosto. Ele também garantiu que novas medidas de fiscalização, mais duras, deverão entrar em vigor em breve, como acompanhamento das apostas por CPF, limitação das formas de pagamento, regulamentação da publicidade e estabelecimento de medidas voltadas à prevenção do vício.
Em setembro, a Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo apresentou ação ao Supremo Tribunal Federal um pedido para que se declare inconstitucional a lei que regulamenta as apostas esportivas online (bets). A ação direta de inconstitucionalidade está sob a relatoria de Luiz Fux.
Já o presidente da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), Isaac Sidney, defendeu que a transferência via Pix para empresas de bets seja proibida, a exemplo do que já houve com cartões de crédito, cujos pagamentos foram banidos das plataformas. “Os números divulgados pelo Banco Central (BC) são simplesmente chocantes. Mostram que, nos últimos 6 meses, 24 milhões de brasileiros drenaram dos seus orçamentos R$ 20 bilhões em média. Se projetarmos no horizonte maior, já antevejo uma catástrofe ou bolha de inadimplência se formando e precisamos impedir que venha a explodir. Não podemos pagar para ver e essa aposta não iremos fazer”, afirmou Sidney, em entrevista no final de setembro, após divulgação do estudo do BC.
Na semana passada, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), autorizou a abertura de Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar o avanço das bets ilegais no Brasil. A iniciativa é da senadora Soraya Thronicke (Podemos-MS). Ou seja, o tema ainda é motivo de debate, inclusive, dentro do parlamento brasileiro.
ENTREVISTA: “Apostas já impactam orçamento de itens essenciais”
O economista Gerson Charchat, sócio da Strategy& do Brasil, diz que os gastos com apostas esportivas “já superam outros tipos de despesas discricionárias, como lazer, cultura e produtos pessoais, e já impactam o orçamento destinado à alimentação, afetando a dinâmica da economia de forma geral. Ele respondeu a duas perguntas do Correio do Povo.
As apostas esportivas começaram a operar há pouco tempo no Brasil, mas já têm grande relevância no consumo das famílias, especialmente nas classes mais baixas. Para onde está faltando o dinheiro que agora é destinado às apostas? Quais setores sentirão mais o impacto da entrada desse novo ator na economia?
Nossa análise mostra que apostas, com crescimento exponencial, estão se aproximando dos valores gastos com lazer, cultura e serviços pessoais e podem passar a exercer pressão sobre a demanda por produtos essenciais. Esse fenômeno pode gerar, inclusive, um aumento no endividamento entre a população de baixa renda, trazendo impactos negativos para o crescimento econômico do país. As apostas estão comprometendo o orçamento familiar, especialmente nas classes D e E. Em 2023, por exemplo, as apostas representavam cerca de 1,4% do orçamento dessas classes, o que é bastante significativo. Para contextualizar, isso equivale a aproximadamente 5% do que essas famílias gastam com alimentos. Isso quer dizer que recursos antes destinados à alimentação agora estão sendo direcionados para as apostas. Além disso, cerca de 50% das pessoas das classes sociais mais baixas afirmaram que, anteriormente, utilizavam parte desse dinheiro para poupança ou para frequentar bares, restaurantes e serviços de delivery, mas agora estão destinando esses recursos às apostas. Além disso, 43% dos entrevistados em um estudo realizado em parceria com o Instituto Locomotiva relataram que o dinheiro que antes era gasto em roupas, cinema, teatro e shows agora está sendo utilizado para as bets.
Quais são os principais desafios regulatórios que o Brasil enfrenta em relação à legalização e fiscalização das apostas esportivas?
A regulamentação das apostas é uma medida que traz diversos aspectos positivos. Em primeiro lugar, ela permite uma maior transparência, já que torna possível identificar com clareza quais empresas estão atuando no mercado. Essas empresas, por sua vez, passam a ser obrigadas a pagar tributos e a seguir uma série de restrições. Embora ainda necessite de regulamentação, a lei 14.790, de 2023, já estabelece algumas restrições, por exemplo, a proibição de apostas para menores de idade, agentes públicos responsáveis pela fiscalização e aqueles que têm poder de influência nos resultados das apostas. Além disso, é fundamental ampliar a educação na população sobre os efeitos dos jogos e apostas esportivas. Portanto, regulamentar e implementar a nova legislação para esse setor e educar a população será um avanço significativo.
Fonte: Correio do Povo / Fabrício Falkowski